2024-09-03
Porque estamos aqui?
Porque a captura dos sistemas alimentares pelas corporações multinacionais do agronegócio, e cada vez mais do capital financeiro, não pára de aumentar, enquanto o direito à terra, o direito a produzir, à alimentação, à soberania alimentar estão cada vez mais em risco.
Querem vender-nos a ideia de que agricultura industrializada acabaria com a fome no mundo, mas em 2023 aumentou para 345,2 milhões o número de pessoas em insegurança alimentar aguda, enquanto as megacorporações, só o conglomerado conhecido por ABCD (LDC, francesa e as dos EUA: BUNGE, ADM, Cargill), aumentaram a receita de 2019 para 2020 em 1 bilião de dólares e com a pandemia, de 2020 para 2021 aumentaram 74 biliões e de 2021 para 2022 mais 65 biliões (ainda sem a informação da Cargill). Estas quatro corporações que comercializam e transportam mais de 13% dos cereais e oleaginosas do mundo aumentaram os lucros em 75%, apenas em quatro anos.
Lançam sobre os camponeses o estigma da agricultura de subsistência que, dizem, não tem futuro nem condições de alimentar os povos, para abrir caminho à sua estratégia dominadora.
As corporações impõem as suas monoculturas intensivas e super-intensivas, deslocalizam a produção, usam de agro-tóxicos e OGM’s, esgotam recursos naturais (água em particular), reduzem a biodiversidade, desertificam vastas regiões, açambarcam terras e eliminam milhões de camponeses em todo o mundo.
Mas o certo é que a fome não pára de aumentar, os lucros das corporações crescem escandalosamente assim como o seu domínio sobre povos e países.
Sob a capa de ajudas ao desenvolvimento, com financiamentos e exportação de equipamentos e de técnicos, instalam gigantescas explorações, para fornecer commodities às agro-indústrias dos países ricos, destruindo as agriculturas camponesas desses países, tornando os seus povos dependentes dos interesses predadores das corporações.
A própria ONU e a FAO, que deviam cuidar dos povos, incentivam a redução do papel dos Estados na alimentação dos seus povos e o reforço das multinacionais a quem só interessa investir onde e no que dá maior lucro.
É Álvaro Lario, presidente do FIDA (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, da ONU) quem, já depois dos protestos dos agricultores de países da Europa, no início deste ano, afirmava que “os agricultores dos países pobres têm que decidir entre comer ou plantar”, por outras palavras, apontando para o fim da agricultura camponesa e a entrega dos destinos da alimentação dos povos às grandes corporações do agronegócio.
Porque cada vez mais pessoas e organizações tomam consciência deste quadro negro, estamos aqui para construir um mundo melhor e mais justo.
Ao contrário do que as corporações e muitos Governos dizem e da discriminação que nos fazem afirmamos que, com respeito dos direitos consagrados na UNDROP, a Agricultura Camponesa, aliando o saber e a cultura milenários ao conhecimento científico, desenvolvendo os princípios e as práticas sócio-económicas e agroecológicas, é o futuro do campesinato, mas também o da alimentação das populações num planeta mais saudável.
Porque estamos em Portugal e no ano em que celebramos os 50 Anos da Revolução de Abril, alguns apontamentos sobre o percurso da agricultura e da alimentação, de então até aos nossos dias.
Com Abril veio a esperança numa vida melhor e mais justa para camponeses com e sem terra.
Nas terras do Sul, com a Reforma Agrária quis-se que as terras do latifúndio improdutivo passassem a produzir alimento e uma vida digna para quem trabalha a terra.
No Norte, onde predominava (e continua a predominar a Agricultura Familiar), criaram-se e reorganizaram-se estruturas como a Empresa Pública de Abastecimento de Cereais (EPAC) ou a Junta Nacional dos Produtos Pecuários (JNPP), a Junta Nacional do Vinho (JNV) para apoiar o escoamento da produção, fizeram-se Leis como a do Arrendamento Rural, a Lei dos Baldios, a Extinção dos Foros, foi criada a Extensão Rural.
Os camponeses organizaram-se em Associações, Cooperativas de Produção, de Comercialização, de Águas, de Máquinas, Movimentos e Associações para a Previdência Rural, Mútuas de Gado, de Foreiros, de Rendeiros.
Desta grande mobilização de vontades, nasceu a CNA em 1978, criada por agricultores para defender os seus direitos, começando pelo direito à terra que trabalham.
Com a entrada na então CEE, e particularmente no que à agricultura e alimentação respeita, tudo começou a piorar, principalmente depois da Reforma da PAC de 1992 com a baixa política dos preços à produção e os subsídios que cada vez excluem mais pequenos agricultores e compartes, enquanto paga para não produzir, financia megaprojectos de produção intensiva e super-intensiva, na lógica do agronegócio de produzir para exportar, em prejuízo da alimentação de proximidade da nossa população com os nossos produtos.
Entre os Recenseamentos Agrícolas de 1986 (o primeiro depois da entrada da CEE) e o último, de 2019, foram eliminadas 284.544 explorações, 52% das então existentes, a um ritmo médio de 1,1 exploração por hora, a grande maioria, 58%, as pequenas e médias, até 5 ha, enquanto as explorações acima de 50 ha aumentaram 34%, fazendo com que a área média por exploração passasse de 9,4 para 19 ha. Digo eliminadas porque quem necessita da terra para viver não a abandona.
Mesmo assim, resistindo, a Agricultura Familiar, que representa a generalidade das explorações até 5 ha, representa 72,2% do total das explorações, apesar de ocuparem apenas 9,2% da área total, enquanto 4,6% das explorações as que têm mais de 50 ha ocuparem já 69,4% da área total.
No Ano Internacional da Agricultura Familiar (EAF), 2014, o 7º Congresso da CNA aprovou a proposta de Estatuto da Agricultura Familiar, nos princípios da agroecologia e o Decreto-Lei foi publicado em Agosto de 2018, quase sem efeito prático porque faltou vontade política ao Governo de então para implementar as medidas consagradas e o actual Governo segue-lhe as pisadas. Seis anos após a publicação do EAF, em todo o país, há apenas 1.202 títulos activos
Foi também a CNA a impulsionadora da criação do CeCAFA – Centro de Competências para a Agricultura Familiar e a Agroecologia, juntando Associações de Agricultores, instituições académicas e outra estruturas, Centro de Competências para promover a Agricultura Familiar e a Agroecologia, homologado mas esquecido pelo Governo.
Pelo mesmo caminho vai a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ou o PADAF construído, entre outras entidades, pela CNA e o IPV- ESAV, que a anterior ministra meteu na gaveta e o actual ignora.
Como se não bastasse esta trajectória, agora temos as eólicas e os parques fotovoltaicos a ocupar as nossas terras, a transformar a paisagem, a reduzir a biodiversidade, a semear desertos de espelhos, dizem, para criar uma economia verde, destruindo o verde.
Pode faltar-nos tudo o mais, mas a vida não existe sem ar respirável, água e alimento.
É por tudo isto que aqui estamos, discutindo os caminhos do futuro, como avançar para a agroecologia nas suas vertentes social, produtiva, ambiental, tendo como alicerce a Agricultura Familiar, os camponeses, respeitando-os, apoiando-os como consagra a UNDROP, aprovada em 2018 na Assembleia Geral da ONU, depois de 17 anos de luta iniciada pela Via Campesina.
As populações rurais, em muitas partes do planeta, estão envelhecidas e no seu rejuvenescimento, na transmissão de camponês a camponês, não só nas práticas agrícolas, mas para a manutenção da cultura, das tradições, dos saberes, é fundamental investir na reprodução da família camponesa, conseguir que os filhos possam continuar o amor à terra e o trabalho de avós e pais.
As vontades por esse mundo fora são muitas, cada região com as suas características, com avanços e recuos, procurando ultrapassar barreiras, colhendo saberes ancestrais, discutindo e trocando experiências, estamos aqui cientes da nossa razão, com a convicção de que novos e melhores frutos alcançaremos.
Intervenção de Alfredo Campos, do Conselho Nacional da CNA, na sessão presencial do Ciclo de Conferências “Granjear Saberes, Construir o Futuro”, a 2 de Setembro, em Viseu, durante o X Congresso Internacional de Agroecologia. O tema da sessão foi “Transição para práticas Agroecológicas com a Agricultura Familiar”.