2021-06-21

Soberania Alimentar é necessária para garantir a segurança alimentar e a sustentabilidade no planeta

Intervenção de Alfredo Campos em representação da Via Campesina (LVC) numa iniciativa da Década das Nações Unidas para a Agricultura Familiar: Melhorar os resultados bem-sucedidos para expandir a sua implementação para sistemas agro-alimentares sustentáveis.

Por Alfredo Campos

Mais de um ano após o início da pandemia, ainda estamos numa situação global de incerteza e confusão que nos faz viver e planear as nossas acções num clima de urgência permanente. 

As nossas organizações de agricultores familiares salientam que a pandemia destacou a natureza insustentável e inadequada do sistema alimentar global controlado pelas grandes empresas e as desigualdades que reproduz.

As restrições do confinamento afectaram desproporcionalmente os agricultores e as suas comunidades, especialmente os pobres e a classe trabalhadora.

Temos de reconhecer que alguns Estados aproveitaram a pandemia para exercer um maior controlo autoritário sobre as pessoas. Assistimos a um aumento dos casos de expropriação de terras e de recursos e hídricos, assassínios de líderes sociais, bem como violência doméstica contra as mulheres.

A pandemia está a ser usada como uma oportunidade para implementar reformas neoliberais e favoráveis às grandes empresas em todas as regiões. O encerramento dos mercados territoriais (mercados familiares, mercados semanais e locais, etc.) mantendo os supermercados abertos teve efeitos desastrosos sobre os meios de subsistência dos pequenos produtores e não se justifica pelas exigências de segurança.

Neste contexto de crise e emergência, a LVC trabalha arduamente:

- As iniciativas mais eficazes têm sido entre as comunidades locais organizadas, muitas vezes em colaboração com agências governamentais e autoridades públicas mais receptivas. Mobilizaram e apoiaram a distribuição de pacotes alimentares dentro dos países como noutros países e regiões.

- Os camponeses e os agricultores familiares têm estado na vanguarda das iniciativas e mecanismos de solidariedade dirigidos às pessoas e às comunidades vulneráveis. Organizações agrícolas organizaram campanhas para divulgar informações sobre como prevenir o contágio, exigiram medidas para proteger os trabalhadores agrícolas e do sector da alimentação e denunciaram a violência contra líderes e povos, especialmente mulheres.

- Apelamos às nossas bases para uma transformação radical dos sistemas alimentares para alcançar uma maior equidade e sustentabilidade, bem como políticas públicas e mecanismos de protecção para os vulneráveis. Entre estes pontos inclui-se: produção nacional de alimentos para consumo interno; mercados de proximidade com cadeias de abastecimento curtas e ligações rural-urbanas mais eficazes; agroecologia; regulamentação dos preços para favorecer os produtores e não os intermediários; acesso e controlo dos recursos naturais por parte dos produtores; Apoio à Agricultura Familiar e às associações de mulheres e ao financiamento directo das suas organizações; medidas financeiras adequadas, incluindo uma redução das taxas de juro de crédito.

Perante tudo isto, como organização de agricultores temos novos desafios. As restrições contra a COVID-19, especialmente as que viajam dentro e fora das fronteiras nacionais, colocaram enormes desafios às nossas organizações em termos de participação e continuidade em torno dos encontros físicos. O nosso movimento teve de se adaptar às novas exigências de acesso aos espaços online e continuar a sua mobilização e presença em processos políticos nacionais, regionais e internacionais.

Fizemos esforços significativos para acompanhar os diferentes processos internacionais ligados à Década e a outros espaços de Governação Global das agências sediadas em Roma. As reuniões online geraram uma série de problemas no que diz respeito à participação das nossas organizações, interpretação simultânea em línguas, fusos horários nos respectivos países e continentes, ligações de internet, fadiga causada por actividades online, etc.

Entre as nossas prioridades, continuamos a apostar em:

  • A realização dos direitos dos camponeses através da promoção da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e outras pessoas que trabalham nas zonas rurais (UNDROP)...

Os objectivos da Década, a nível global, regional e nacional, só podem ser alcançados com a aplicação efectiva do UNDROP.

  • Combate à criminalização das nossas lutas e repressão

Como movimento, temos apoiado as lutas dos grandes protestos agrícolas na Índia,as lutas do povo colombiano e palestiniano, a resistência constante dos migrantes que continuam a dar as suas vidas nas fronteiras para denunciar a pilhagem do sul global e exercer o seu direito de viver melhor.

As nossas acções de solidariedade tornaram visível a situação das comunidades camponesas e a criminalização de líderes agrícolas e trabalhadores migrantes na Colômbia, Venezuela, Indonésia, Equador, Brasil, Mali, Palestina, Espanha, Tailândia, entre outros países. 

  • Finalmente, em 2021, celebramos 25 anos de construção da Soberania Alimentar. É uma grande oportunidade para dar visibilidade às iniciativas que já alcançámos e para prosseguir os nossos esforços colectivos para concretizar a Soberania Alimentar nos próximos 25 anos. 

 A LVC apresentou a sua proposta de "Soberania Alimentar" na Cimeira Alimentar Mundial de 1996, para se opor ao modelo destrutivo do agronegócio que continua a causar fome, desigualdade e crise climática. A Soberania Alimentar é o direito das pessoas a produzir autonomamente alimentos saudáveis, nutritivos, climáticos e culturalmente adequados, utilizando recursos locais e através de meios agroecológicos, para satisfazer principalmente as necessidades alimentares locais das suas comunidades. 

A Soberania Alimentar é mesmo necessária para garantir a segurança alimentar e a sustentabilidade no planeta. Alguns governos como o Equador, a Venezuela, a Nicarágua, o Mali, a Bolívia, o Nepal, o Senegal, etc. incluíram-no nas suas políticas e alguns nas suas constituições.

 

Para que estas prioridades se traduzam em acções concretas nos próximos anos da Década, é necessário:

  • Avaliar em que medida as organizações camponesas, a agricultura familiar, participam na construção dos Planos de Acção, quais foram os principais problemas mencionados, quais as propostas que apresentaram, em que medida foram incorporadas nos Planos;
  • Mais importante do que a aprovação dos Planos Nacionais é a sua implementação: que medidas legislativas, que políticas públicas, que recursos financeiros os governos estão a implementar para a sua realização;
  • Identificar as dificuldades dos países onde ainda não foram feitos progressos;
  • Reforçar as ligações entre os escritórios dos países da FAO, em primeiro lugar com as organizações de agricultores familiares, os governos e outras partes interessadas, para incentivar a criação de plataformas onde as organizações de agricultores são o elo central.

Acreditamos que é necessário identificar iniciativas que promovam a Agricultura Familiar, mesmo que não estejam incluídos no Plano Global de Acção da Década, como é o caso de Portugal e do trabalho do CNA com o Governo para a aprovação e implementação do Estatuto da Agricultura Familiar, ou a Lei agora aprovada em Itália (após dez anos de trabalho), ou na Argentina, ou no Brasil, etc., situações que também demonstram a falta de vontade política e/ou as dificuldades dos governos para ultrapassar os poderes instalados, e tentar replicar estas iniciativas noutros países;

A União Europeia não é um paraíso, a PAC eliminou centenas de milhares de explorações familiares, a nova direcção da digitalização, da eficiência, etc., em vez de promover, pode levar à eliminação das explorações agrícolas, à perda de biodiversidade, etc. 

Do nosso papel de movimento de agricultores, é importante reflectir sobre a crise alimentar iminente que estamos a começar a viver, agravada pela crise climática e aproveitada pelas potências políticas e económicas (para acelerar o seu projecto de exportação, liberalização dos mercados e subjugação das populações).

A pandemia demonstrou mais uma vez que os sistemas alimentares locais e os canais de comercialização de circuitos curtos são mais resistentes e capazes de inovar em tempos de crise, bem como de alimentar as pessoas com alimentos saudáveis sem dependerem das cadeias de abastecimento.

Por todas estas razões, a LVC está empenhada no sucesso da Década, na concretização dos seus objectivos, para respeitar os direitos da Agricultura Familiar consagrados no UNDROP, e está disposta a trabalhar com todos e como a grande organização global que é, está disponível para assumir as suas responsabilidades.